quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014
A HISTÓRIA OFICIAL DE 1964 - OLAVO DE CARVALHO
Se houve na história da América
Latina um episódio sui generis, foi
a Revolução de Março (ou, se quiserem,
o golpe de abril) de 1964. Numa década
em que guerrilhas e atentados espoucavam
por toda parte, seqüestros e bombas eram
parte do cotidiano e a ascensão do comunismo
parecia irresistível, o maior esquema
revolucionário já montado pela esquerda
neste continente foi desmantelado da noite
para o dia e sem qualquer derramamento de
sangue.
O fato é tanto mais inusitado quando
se considera que os comunistas estavam
fortemente encravados na administra
ção federal, que o presidente da Rep
ública apoiava ostensivamente a rebeli
ão esquerdista no Exército e que em
janeiro daquele ano Luís Carlos Prestes,
após relatar à alta liderança soviética o
estado de coisas no Brasil, voltara de
Moscou com autorização para desencadear
por fim! a guerra civil no campo.
Mais ainda, a extrema direita civil, chefiada
pelos governadores Adhemar de
Barros, de São Paulo, e Carlos Lacerda,
da Guanabara, tinha montado um imenso
esquema paramilitar mais
ou menos clandestino,
que totalizava não menos
de 30 mil homens armados
de helicópteros,
bazucas e metralhadoras
e dispostos a opor à ousadia
comunista uma rea
ção violenta. Tudo estava,
enfim, preparado
para um formidável banho
de sangue.
Na noite de 31 de
março para 1o. de abril,
uma mobilização militar meio improvisada
bloqueou as ruas, pôs a liderança
esquerdista para correr e instaurou um
novo regime num país de dimensões continentais
sem que houvesse, na gigantesca
operação, mais que duas vítimas:
um estudante baleado na perna acidentalmente
por um colega e o líder comunista
Gregório Bezerra, severamente maltratado
por um grupo de soldados no
Recife. As lideranças esquerdistas, que
A HISTÓRIA OFICIAL DE 1964
até a véspera se gabavam de seu respaldo
militar, fugiram em debandada para
dentro das embaixadas, enquanto a extrema-
direita civil, que acreditava ter chegado
sua vez de mandar no país, foi
cuidadosamente imobilizada pelo governo
militar e acabou por desaparecer do
cenário político.
Qualquer pessoa no pleno uso da
razão percebe que houve aí um fenômeno
estranhíssimo, que requer investiga-
ção. No entanto, a bibliografia sobre o
período, sendo de natureza predominantemente
revanchista e incriminatória,
acaba por dissolver a originalidade do
episódio numa sopa reducionista onde
tudo se resume aos lugares-comuns da
violência e da repressão, incumbidos
de caracterizar magicamente uma
etapa da história onde o sangue e a maldade
apareceram bem menos do que seria
normal esperar naquelas circunstâncias.
Os trezentos esquerdistas mortos
após o endurecimento repressivo com
que os militares responderam à reação
terrorista da esquerda, em 1968, representam
uma taxa de viol
ência bem modesta
para um país que ultrapassava
a centena
de milhões de habitantes,
principalmente
quando comparada aos
17 mil dissidentes assassinados
pelo regime
cubano numa popula
ção quinze vezes
menor. Com mais nitidez
ainda, na nossa escala
demográfica, os
dois mil prisioneiros políticos que chegaram
a habitar os nossos cárceres
foram rigorosamente um nada, em compara
ção com os cem mil que abarrotavam
as cadeias daquela ilhota do
Caribe. E é ridículo supor que, na época,
a alternativa ao golpe militar fosse a normalidade
democrática. Essa alternativa simplesmente
não existia: a revolução destinada
a implantar aqui um regime de tipo fidelista
com o apoio do governo soviético e da
Conferência Tricontinental de Havana já ia
bem adiantada. Longe de se caracterizar
pela crueldade repressiva, a resposta militar
brasileira, seja em comparação com os demais
golpes de direita na América Latina
seja com a repressão cubana, se destacou
pela brandura de sua conduta e por sua
habilidade de contornar com o mínimo de
violência uma das situações mais explosivas
já verificadas na história deste continente.
No entanto, a historiografia oficial
repetida ad nauseam pelos livros didáticos,
pela TV e pelos jornais consagrou uma
visão invertida e caricatural dos acontecimentos,
enfatizando até à demência os feitos
singulares de violência e omitindo sistematicamente
os números comparativos
que mostrariam sem abrandar, é claro, a
sua feiúra moral a sua perfeita inocuidade
histórica.
Por uma coincidência das mais irônicas,
foi a própria brandura do governo militar
que permitiu a entronização da mentira
esquerdista como história oficial. Inutilizada
para qualquer ação armada, a esquerda
se refugiou nas universidades, nos jornais
e no movimento editorial, instalando aí sua
principal trincheira. O governo, influenciado
pela teoria golberiniana da panela de
pressão, que afirmava a necessidade de
uma válvula de escape para o ressentimento
esquerdista, jamais fez o mínimo esforço
para desafiar a hegemonia da esquerda
nos meios intelectuais, considerados militarmente
inofensivos numa época em
que o governo ainda não tomara conhecimento
da estratégia gramsciana e não
imaginava ações esquerdistas senão de natureza
inssurrecional, leninista. Deixados à
vontade no seu feudo intelectual, os derrotados
de 1964 obtiveram assim uma vingan-
ça literária, monopolizando a indústria das
interpretações do
fato consumado.
E, quando a ditadura
se desfez por
mero cansaço, a
esquerda, intoxicada
de Gramsci,
já tinha tomado
consciência das
vantagens políticas da hegemonia cultural,
e apegou-se com redobrada sanha ao seu
monopólio do passado histórico. É por isso
que a literatura sobre o regime militar, em vez
de se tornar mais serena e objetiva com a
passagem dos anos, tanto mais assume o
tom de polêmica e denúncia quanto mais os
fatos se tornam distantes e os personagens
desaparecem nas brumas do tempo.
Mais irônico ainda é que o ódio não
se atenue nem mesmo hoje em dia, quando
a esquerda, levada pelas mudanças do cen
ário mundial, já vem se transformando
rapidamente naquilo mesmo que os militares
brasileiros desejavam que ela fosse:
uma esquerda socialdemocrática parlamentar,
à européia, desprovida de ambições
revolucionárias de estilo cubano. O discurso
da esquerda atual coincide, em gênero,
número e grau, com o tipo de oposição que,
na época, era não somente consentido como
incentivado pelos militares, que viam
na militância socialdemocrática uma
alternativa saudável para a violência
revolucionária.
Durante toda a história da
esquerda mundial, os comunistas
votaram a seus concorrentes, os
socialdemocratas, um ódio muito
mais profundo do que aos liberais e
capitalistas. Mas o tempo deu ao
renegado Kautsky a vitória sobre
a truculência leninista. E, se os nossos
militares tudo fizeram justamente
para apressar essa vitória, por que
continuar a considerá-los fantasmas
de um passado tenebroso, em vez de
reconhecer neles os precursores de
um tempo que é melhor para todos,
inclusive para as esquerdas?
Para completar, muita gente
na própria esquerda já admitiu
não apenas o caráter maligno e
suicidário da reação guerrilheira,
mas a contribuição positiva do
regime militar à consolidação de
uma economia voltada predominantemente
para o mercado interno
uma condição básica da soberania nacional.
Tendo em vista o preço modesto
que esta nação pagou, em vidas humanas,
para a eliminação daquele mal e a
conquista deste bem, não estaria na hora
de repensar a Revolução de 1964 e remover
a pesada crosta de slogans pejorativos
que ainda encobre a sua realidade
histórica?
(O Globo, 19 de janeiro de 1999)
* Filósofo, Escritor e Jornalista
* Olavo de Carvalho
Tendo em vista o preço
modesto que esta nação
pagou, em vidas humanas,
para a eliminação daquele
mal e a conquista deste bem,
não estaria na hora de
repensar a Revolução de
1964 e remover a pesada
crosta de slogans pejorativos
que ainda encobre a sua
realidade histórica?
Nº 188 - 31 de Mar
Latina um episódio sui generis, foi
a Revolução de Março (ou, se quiserem,
o golpe de abril) de 1964. Numa década
em que guerrilhas e atentados espoucavam
por toda parte, seqüestros e bombas eram
parte do cotidiano e a ascensão do comunismo
parecia irresistível, o maior esquema
revolucionário já montado pela esquerda
neste continente foi desmantelado da noite
para o dia e sem qualquer derramamento de
sangue.
O fato é tanto mais inusitado quando
se considera que os comunistas estavam
fortemente encravados na administra
ção federal, que o presidente da Rep
ública apoiava ostensivamente a rebeli
ão esquerdista no Exército e que em
janeiro daquele ano Luís Carlos Prestes,
após relatar à alta liderança soviética o
estado de coisas no Brasil, voltara de
Moscou com autorização para desencadear
por fim! a guerra civil no campo.
Mais ainda, a extrema direita civil, chefiada
pelos governadores Adhemar de
Barros, de São Paulo, e Carlos Lacerda,
da Guanabara, tinha montado um imenso
esquema paramilitar mais
ou menos clandestino,
que totalizava não menos
de 30 mil homens armados
de helicópteros,
bazucas e metralhadoras
e dispostos a opor à ousadia
comunista uma rea
ção violenta. Tudo estava,
enfim, preparado
para um formidável banho
de sangue.
Na noite de 31 de
março para 1o. de abril,
uma mobilização militar meio improvisada
bloqueou as ruas, pôs a liderança
esquerdista para correr e instaurou um
novo regime num país de dimensões continentais
sem que houvesse, na gigantesca
operação, mais que duas vítimas:
um estudante baleado na perna acidentalmente
por um colega e o líder comunista
Gregório Bezerra, severamente maltratado
por um grupo de soldados no
Recife. As lideranças esquerdistas, que
A HISTÓRIA OFICIAL DE 1964
até a véspera se gabavam de seu respaldo
militar, fugiram em debandada para
dentro das embaixadas, enquanto a extrema-
direita civil, que acreditava ter chegado
sua vez de mandar no país, foi
cuidadosamente imobilizada pelo governo
militar e acabou por desaparecer do
cenário político.
Qualquer pessoa no pleno uso da
razão percebe que houve aí um fenômeno
estranhíssimo, que requer investiga-
ção. No entanto, a bibliografia sobre o
período, sendo de natureza predominantemente
revanchista e incriminatória,
acaba por dissolver a originalidade do
episódio numa sopa reducionista onde
tudo se resume aos lugares-comuns da
violência e da repressão, incumbidos
de caracterizar magicamente uma
etapa da história onde o sangue e a maldade
apareceram bem menos do que seria
normal esperar naquelas circunstâncias.
Os trezentos esquerdistas mortos
após o endurecimento repressivo com
que os militares responderam à reação
terrorista da esquerda, em 1968, representam
uma taxa de viol
ência bem modesta
para um país que ultrapassava
a centena
de milhões de habitantes,
principalmente
quando comparada aos
17 mil dissidentes assassinados
pelo regime
cubano numa popula
ção quinze vezes
menor. Com mais nitidez
ainda, na nossa escala
demográfica, os
dois mil prisioneiros políticos que chegaram
a habitar os nossos cárceres
foram rigorosamente um nada, em compara
ção com os cem mil que abarrotavam
as cadeias daquela ilhota do
Caribe. E é ridículo supor que, na época,
a alternativa ao golpe militar fosse a normalidade
democrática. Essa alternativa simplesmente
não existia: a revolução destinada
a implantar aqui um regime de tipo fidelista
com o apoio do governo soviético e da
Conferência Tricontinental de Havana já ia
bem adiantada. Longe de se caracterizar
pela crueldade repressiva, a resposta militar
brasileira, seja em comparação com os demais
golpes de direita na América Latina
seja com a repressão cubana, se destacou
pela brandura de sua conduta e por sua
habilidade de contornar com o mínimo de
violência uma das situações mais explosivas
já verificadas na história deste continente.
No entanto, a historiografia oficial
repetida ad nauseam pelos livros didáticos,
pela TV e pelos jornais consagrou uma
visão invertida e caricatural dos acontecimentos,
enfatizando até à demência os feitos
singulares de violência e omitindo sistematicamente
os números comparativos
que mostrariam sem abrandar, é claro, a
sua feiúra moral a sua perfeita inocuidade
histórica.
Por uma coincidência das mais irônicas,
foi a própria brandura do governo militar
que permitiu a entronização da mentira
esquerdista como história oficial. Inutilizada
para qualquer ação armada, a esquerda
se refugiou nas universidades, nos jornais
e no movimento editorial, instalando aí sua
principal trincheira. O governo, influenciado
pela teoria golberiniana da panela de
pressão, que afirmava a necessidade de
uma válvula de escape para o ressentimento
esquerdista, jamais fez o mínimo esforço
para desafiar a hegemonia da esquerda
nos meios intelectuais, considerados militarmente
inofensivos numa época em
que o governo ainda não tomara conhecimento
da estratégia gramsciana e não
imaginava ações esquerdistas senão de natureza
inssurrecional, leninista. Deixados à
vontade no seu feudo intelectual, os derrotados
de 1964 obtiveram assim uma vingan-
ça literária, monopolizando a indústria das
interpretações do
fato consumado.
E, quando a ditadura
se desfez por
mero cansaço, a
esquerda, intoxicada
de Gramsci,
já tinha tomado
consciência das
vantagens políticas da hegemonia cultural,
e apegou-se com redobrada sanha ao seu
monopólio do passado histórico. É por isso
que a literatura sobre o regime militar, em vez
de se tornar mais serena e objetiva com a
passagem dos anos, tanto mais assume o
tom de polêmica e denúncia quanto mais os
fatos se tornam distantes e os personagens
desaparecem nas brumas do tempo.
Mais irônico ainda é que o ódio não
se atenue nem mesmo hoje em dia, quando
a esquerda, levada pelas mudanças do cen
ário mundial, já vem se transformando
rapidamente naquilo mesmo que os militares
brasileiros desejavam que ela fosse:
uma esquerda socialdemocrática parlamentar,
à européia, desprovida de ambições
revolucionárias de estilo cubano. O discurso
da esquerda atual coincide, em gênero,
número e grau, com o tipo de oposição que,
na época, era não somente consentido como
incentivado pelos militares, que viam
na militância socialdemocrática uma
alternativa saudável para a violência
revolucionária.
Durante toda a história da
esquerda mundial, os comunistas
votaram a seus concorrentes, os
socialdemocratas, um ódio muito
mais profundo do que aos liberais e
capitalistas. Mas o tempo deu ao
renegado Kautsky a vitória sobre
a truculência leninista. E, se os nossos
militares tudo fizeram justamente
para apressar essa vitória, por que
continuar a considerá-los fantasmas
de um passado tenebroso, em vez de
reconhecer neles os precursores de
um tempo que é melhor para todos,
inclusive para as esquerdas?
Para completar, muita gente
na própria esquerda já admitiu
não apenas o caráter maligno e
suicidário da reação guerrilheira,
mas a contribuição positiva do
regime militar à consolidação de
uma economia voltada predominantemente
para o mercado interno
uma condição básica da soberania nacional.
Tendo em vista o preço modesto
que esta nação pagou, em vidas humanas,
para a eliminação daquele mal e a
conquista deste bem, não estaria na hora
de repensar a Revolução de 1964 e remover
a pesada crosta de slogans pejorativos
que ainda encobre a sua realidade
histórica?
(O Globo, 19 de janeiro de 1999)
* Filósofo, Escritor e Jornalista
* Olavo de Carvalho
Tendo em vista o preço
modesto que esta nação
pagou, em vidas humanas,
para a eliminação daquele
mal e a conquista deste bem,
não estaria na hora de
repensar a Revolução de
1964 e remover a pesada
crosta de slogans pejorativos
que ainda encobre a sua
realidade histórica?
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